Milan Kundera tira da manga uma surpreendente divagação teológica, no conto “O Pomo Dourado do Eterno Desejo”, presente em Risíveis Amores. Ele argumenta, pela voz do narrador-personagem, que Judas Iscariotes traiu Jesus por “acreditar infinitamente nele”, queria entregar o Messias logo à ação, “queria apressar a hora da sua vitória”.
Parece uma gentileza ao traidor mais famoso de toda a história. Isso o faz parecer — em certo sentido — com Pedro no Getsêmani, ao se opor ante os soldados que tinham vindo para levar Jesus Cristo. Pedro queria interferir na missão do Mestre, enquanto o outro de sua parte queria empurrá-Lo para o seu objetivo de uma vez. Em se tratando de Judas Iscariotes, a interferência de entregar Jesus aos seus algozes, era o seu destino.
A hermenêutica kundereana traz certa humanidade ao Traidor. Por um momento, não o vejo como o próprio Satanás encarnado; como o desgraçado corrompido por uma miséria de dinheiro. Não o vejo como aquele de quem Jesus dissera “seria melhor não haver nascido”, porque seu destino era levar o Filho de Deus à morte.
O mesmo personagem, depois ainda menciona Tomé: “sou um híbrido infame de Judas Iscariotes e de Tomé; aquele que chamamos o Incrédulo”. Sim, este discípulo é conhecido por isso: sua incredulidade.
Mas espere um pouco, este homem que andou com Jesus, viu as suas proezas de perto, com os próprios olhos, é um incrédulo?
Ora, acho a incredulidade de Tomé natural. Se tenho um discípulo favorito dentre os 12, é Tomé. Porque o acho mais próximo de nós, pois, qual de nós, ao deparar-se com a aparição do Mestre ressuscitado diante de todos reunidos, não duvidaria de tamanho fenômeno. Quem não exclamaria — “És tu mesmo, Senhor?” — “Então, deixe-me ver as tuas feridas!” — “Deixe-me tocar as chagas para certificar-me de uma vez!” — pois penso que o faria. Os próprios estudiosos da lei, os religiosos da época, não o aceitaram, eles o crucificaram. Muitos dos que deitavam ramos adiante do caminho que Jesus fazia, montado no burrinho, na entrada triunfal em Jerusalém, não estariam dias depois gritando “Crucifica!”?
Acho Tomé um discípulo interessante, um tipo distinto dos demais, justamente por sua postura. Onde vêem nele um desagrado, uma inconveniência, por que não dizer um pecado, vejo sua integridade, uma autenticidade, demonstrando ingenuamente precisar ter a fé aperfeiçoada.
Quem diria. Tomé, o menos instruído dentre os apóstolos, chamado o Incrédulo, até hoje lembrado como tal, demonstraria sincero amor por Cristo, quando segue para evangelizar a Síria, depois a Índia e a China, e, voltando à Índia seria morto, dizem que transpassado por uma lança — tornaria-se então um mártir da igreja. Eis a maior prova de fé, no tempo da igreja primitiva.